terça-feira, 24 de agosto de 2010

O PRÊMIO







Terminei de ler Jane Austen e me lembrei de um comentário que ouvi tempos atrás: “nos livros de Jane Austen, as pessoas demoram muito para serem felizes”. É verdade. “Orgulho e Preconceito” ilustra a tese. Estava lendo “Emma”, um romance no qual não se pode falar exatamente de tristeza. Entretanto, foram necessárias mais de 400 páginas para que a personagem tivesse o seu final feliz.

Durante a leitura não pude deixar de fazer uma analogia. Assim como nos romances de Austen, a felicidade parece demorar muito para me alcançar. Quando cheguei a Brasília para salvar um grande amor - tarefa que não consegui realizar – em um dos períodos de maior tristeza recebi a visita de minha mãe e de minha tia Deolvira. Elas vieram me dar apoio e cuidar um pouco de mim. Naquela ocasião, minha tia disse: “Ana, você está sofrendo agora, mas tenho certeza de que a vida há de te trazer muitas recompensas. Você sofre agora, para ser feliz depois”.

É claro que tive uma coleção de momentos felizes. Mas de um modo geral, a vida andou me pregando peças e não foram poucas vezes em que, recordando as palavras da minha tia, me perguntei: “quando é que o tempo de felicidade vai chegar”?

Imaginava que as turbulências viriam, mas que como nos filmes e nos livros, haveria, ao final, o ponto de equilíbrio. O momento em que as agonias cessam e uma onda de boas novas não para de chegar.

No primeiro dia de agosto fiz cinqüenta anos. É emblemático completar meio século, mas fiquei assustada. Poucos dias antes recebi um prognóstico sobre a minha saúde que não foi exatamente animador. Tenho uma doença renal crônica e durante alguns anos fiz cara de paisagem para a gravidade desse problema. Agora, cheguei numa situação limite. Função renal de 13% e algumas taxas que representam uma preocupação efetiva. A médica que consultei foi muito taxativa, afirmando que a solução para o meu caso seria um transplante. E mais. Esse procedimento não deveria tardar.

Recebi a notícia como quem leva uma porrada e fica um tempo procurando o chão para cair. Apesar do avanço da medicina me perguntava todo tempo: “como é que vou conseguir um doador? Quem seria capaz de um gesto desses, de renúncia, de coragem e, sobretudo, de generosidade?” Os doadores potenciais, que seriam meus familiares, não estavam em condições de ajudar. E convenhamos, essa é uma decisão difícil. Não é questão de pedir emprestado um objeto, significa que a pessoa precisa abrir mão de um órgão, e de um órgão vital. É uma decisão de risco.

Quando estava me resignando que a única saída que me caberia seria enfrentar a diálise fui surpreendida por um telefonema. Era minha amiga Heloisa. Escrevi sobre ela aqui no Blog falando do nosso reencontro e relatando uma amizade que começou assim que cheguei a Brasília. Numa conversa normal de amigas, me contou os últimos acontecimentos de sua vida, em especial, sobre uma decepção que sofrera recentemente. Quando perguntou de mim contei sobre a minha saúde e como essa situação havia me deixado angustiada.

Não poderia ter ficado mais surpresa com o que ouvi. Ela perguntou o que era necessário para o transplante e respondi que a primeira coisa era encontrar uma pessoa com sangue o+, disposta a doar um rim. Da forma mais singela possível e com o maior desprendimento ela disse: “se o problema é esse, não existe mais. Tenho sangue o+, boa saúde, dois rins e um será seu.” Diante da minha perplexidade ela reforçou: “Ana, a gente não se conheceu por acaso, nossa amizade não durou todo esse tempo sem uma razão. Se eu posso te ajudar, é isso que farei. Diga o que tenho que fazer, mas minha decisão de te doar um rim está tomada. Estou pronta para te ajudar”.

Claro que depois dessas palavras tudo que consegui fazer foi chorar. Chorei muito. Eu não contava com isso. Eu não esperava por isso. Eu não imaginava que seria beneficiada por um gesto de tamanha grandeza. Mesmo que a Heloisa não possa me doar um rim, mesmo que ela mude de idéia, a despeito de qualquer coisa que aconteça ela resgatou um sentimento de enorme gratidão. Ela contaminou as pessoas que estão próximas, torcendo pela minha saúde, desencadeou uma onda de felicidade pelo gesto. A atitude de doar, a bondade, a generosidade, a capacidade inacreditável de servir e de fazer isso sem receber um pedido expresso é muito especial.

O que a Heloisa se propôs a fazer é muito grande. É uma atitude para a qual não há adjetivos. E de que maneira é possível agradecer algo assim? Que palavras têm a mesma dimensão do gesto? Não sei. Desde então, choro de alegria, pois quando penso nas palavras dela, sinto como se tivesse recebido um prêmio. Uma chance de poder recomeçar minha vida, de recuperar a esperança, de viver, acreditar nas pessoas e agradecer da forma mais sincera possível essa oportunidade.

Helô, seguro que esse foi o gesto de maior generosidade que já recebi e a demonstração mais absoluta de carinho, amizade e consideração. Posso te garantir que há uma corrente do bem, de pessoas rezando e dando graças pela sua vida e vibrando com sua bondade. Mesmo que o destino não queira que eu receba o seu rim – é claro que torço loucamente pelo contrário – eu já me sinto premiada e nunca, em tempo algum, serei capaz de esquecer sua coragem e abnegação.

Com essa ação a vida nos transfere da condição de amigas, para irmãs. Uma irmandade que se estabelece pelo amor. Por enquanto, a única coisa que posso fazer é dizer um zilhão de vezes: “obrigada”!! Obrigada por se dispor a doar uma parte da sua vida, para que a minha seja possível. Com esse gesto, mais que um final feliz, terei a possibilidade de recomeçar. É como se a vida me permitisse escrever outra história e estabelecer uma nova trajetória. O que mais uma pessoa poderia desejar?