sexta-feira, 23 de março de 2012

"ATÉ UM DIA. ATÉ TALVEZ. ATÉ QUEM SABE"


Tive uma infância solitária. Irmã caçula de dois irmãos mais velhos, são nítidas as lembranças de uma vida entre adultos. Dessa época ficou a mania de falar sozinha,  de brincar no enorme quintal de casa e fazer daquele espaço um universo de fantasias.

Na adolescência, no entanto, a solidão foi atenuada pelas idas a Uruaçu. Cidade do norte do estado, onde morava minha tia Deolvira, irmã de meu pai. Ao contrário de minha casa, com poucas pessoas, a dela vivia em permanente burburinho. Havia os seis filhos e o desfilar frenético de parentes, amigos, conhecidos o que não permitia que houvesse rotina por lá.

Foi na casa de minha tia, que aprendi com minhas primas que a mistura de bicarbonato de sódio com suco de laranja podia se transformar em algo bem parecido com guaraná. Foi também nesse tempo que descobri que era necessário ficar horas com “bobs” na cabeça – cabelos ondulados não eram uma opção - para quem queria causar. Nesse tempo também submeti-me ao martírio de tirar as sobrancelhas, uma dor que nunca esquecerei.

Tia Deolvira vivia numa casa grande, com um quintal que terminava em um córrego. Na frente da casa ela mantinha uma loja e na calçada que dava para a rua principal passávamos horas observando o movimento de carros e pessoas. Minhas primas tinham muitos amigos. Uma delas era filha do dono do cinema, o que nos garantia passaporte para as sessões. Depois, sorvete no Anacleto e idas ocasionais ao Beira Rio, o bar da moda.

Foi em Uruaçu que fiz alguns ritos de passagem, como “flertar”, trocar o primeiro beijo e acreditar que aquele garoto de cabelos claros, olhos azuis, com feições de Jesus Cristo seria para sempre. Foi lá que aprendi que na falta de grana ou de opções de lazer, os meninos roubavam galinhas e a gente passava a noite comendo galinhada e rindo de coisas tolas. Em Uruaçu dancei pela primeira vez, conduzida pelo Carlos Alberto, namorado da minha prima Neide, que também nos levava a bordo de uma camioneta Ford C10, fazendo manobras arriscadas e assustando velhinhas pacatas que ficavam sentadas em frente à rua. Sempre que ele aparecia as pessoas sussurravam: “é o filho do Carradão”, com o sotaque peculiar da região, queriam dizer que era o filho “do Carlos Adão”.

Dessa época, mais que as aventuras, nascia a mais completa adoração pela minha tia. Eu intuía que graças a ela e ao seu acolhimento, teria  a oportunidade de experimentar uma vida de novidades, que em casa não seria possível vivenciar.

Nunca me esquecerei da comida farta, do seu carinho, da devoção aos filhos, da solidariedade com as pessoas, de seus braços sempre abertos para proteger aqueles que se socorriam dela. Minha tia tinha uma preocupação ímpar com a família. Viajava para lugares distantes apenas para visitar um parente e foi incansável nos cuidados com a “Vó Anjinha”.

Não me recordo de ocasião boa ou ruim que minha tia não estivesse presente nas nossas vidas. É impossível esquecer seu bom humor, a forma como fazia piadas de si, das piores situações, da sua força e resignação quando foi surpreendida pelo Parkinson. Como não admirar sua jornada de cuidados na doença do meu tio Neilton e seu amor sem limites pelos filhos, netos e bisnetos? Como uma fênix, estava sempre se reerguendo de uma perda, se refazendo, se reinventando e se amoldando à vida.

Adorava quando minha mãe, sem disfarçar o ciúme dizia: “você é igualzinha à sua Tia Deolvira”. Herdei dela as pernas grossas, o quadril largo, o cabelo rebelde e a inquietação de estar sempre em movimento, de agregar, de amar as pessoas e cultivá-las, mesmo que ao final, algumas delas se revelassem ervas daninhas.

Ano passado ela foi diagnosticada com um câncer raro. Fomos nocauteados pela noticia, sofremos em silêncio e recorremos às orações. Esse vilão não derrubaria a nossa guerreira, ela iria se reerguer, ela não nos deixaria órfãos do seu amor. De fato, ela venceu a batalha e apesar de todas as provações, superou a doença.

Infelizmente, no começo desse ano, quis o destino que o câncer reincidisse. A doença veio fulminante, avassaladora. De repente a nossa heroína estava ali, tombada, refém de uma força maior que ela não seria capaz de suportar. Mas ela lutou. Como lutou. Duas semanas atrás, sai de Brasília num domingo de tarde para vê-la. Embora abatida, com uma voz que mais parecia um sussurro, ela disse coisas lindas. Reiteramos o nosso amor, ela claramente se despediu. Mas a doença não lhe roubou a dignidade, a elegância, o humor. Sai de lá como quem não tinha mais chão. Passei todos esses dias com o coração apertado. Suando frio cada vez que o telefone tocava, com medo da notícia que ninguém queria receber.

No domingo, dia 18, fui visitá-la novamente. Ela já não tinha a mesma lucidez, estava visivelmente derrotada e só pude tocar sua mão, beijá-la e dizer que jamais a esqueceria. Helvécio, emocionado, me disse: “Ana, diga adeus, pois dificilmente veremos sua tia com vida outra vez”. E assim foi. Dois dias depois ela nos deixou.

Agora ela habita um universo paralelo, outra dimensão. Mas olhando-a no seu leito de morte, era impossível não ver na sua face serena a sensação de dever cumprido, de quem entregou-se ao descanso. Ela partiu sem nos deixar, afinal, quem poderá esquecer seus olhinhos apertados quando sorria, sua elegância, seu porte de rainha, sua capacidade de não se levar a sério?

Tia, apesar das adversidades, como vou esquecer você com todas as enfermidades me dizer que me doaria um rim? Como vou esquecer você dizendo que mais que seus sobrinhos, éramos como filhos prá você? Como vai ser todo dia 10 de abril sem te ligar? Como serão os aniversários sem a sua presença? Tia, como vou te esquecer?

Ontem, a Neide me disse que no domingo quando fui embora, você ficou chamando o meu nome. Isso me encheu de alegria, pois acredito que apesar de não termos trocado uma palavra, você me ouviu falar pela última vez que te amo.

Agora, só me resta dizer: Minha querida, minha adorada: “Até um dia. Até talvez. Até quem sabe”.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Cada Dia!

Minhas tardes de terça e quinta têm sido ocupadas por passeios ao Shopping Iguatemi. Não, eu não frequento a Tyffany, Gucci, Christian Louboutin ou as demais lojas de alta grife.
Me contento em andar e olhar roupas que não cabem em mim ou no meu bolso. Compro pequenos mimos, tento não sucumbir ao apelo de mais um sapato. Tomo café, como um sanduiche de rosbife com geleia de pimenta e mergulho no maravilhoso mundo “da Cultura”.

Na minha livraria favorita, esqueço as horas e viajo por lugares físicos ou emocionais por meio de milhões de páginas e palavras.

Saio da “Cultura” com livros que nem sempre leio, mas que compro pelo impulso de tê-los e torná-los uma espécie de projeto, de compromisso, de promessa, como aquelas que nos fazemos todo início de ano.

Há dias em que tudo que preciso é da superficialidade dos livros de capas coloridas, destinados a mulheres que querem apenas se divertir com leitura rasa, que cumpre o papel da abstração e nos coloca em contato com roteiros manjados, como em muitas ocasiões desejariamos viver.

Noutros dias, flerto com a densidade de José Saramago (que me confunde com sua literatura sem pontuação), tenho recaídas por Gabriel Garcia Marquez e Guimarães Rosa. Insisto com obras tão complexas que depois de vencidas 300, de suas 800 páginas, abandono, com a sensação de que minha inteligência não é para tanto. A sensação é que o autor escreveu em códigos que só podem ser decifrados por ele.

Aproveito também para aumentar meu acervo de filmes – sempre os já vistos, alguns, dezenas de vezes. Escolho as trilhas sonoras do percurso inevitável, rumo à diálise. Ritmos alegres, daqueles que ouço alto, como artifício para esquecer o destino que me levará para quatro horas nas quais de alguma maneira, minha vida parece parar, refém daquela máquina, ao mesmo tempo em que é renovada.

Depois volto para casa, respondo e-mails – quase todos dos alunos da PÓS – e fico elaborando novos capítulos, contando pedaços da minha vida, selecionando as pedras do quebra-cabeças que possam traduzir-me para minha única e verdadeira amiga virtual: Miriam.
Sobretudo, espero seus e-mails, como antigamente esperava pelas cartas que me conectavam aos amigos da adolescência. No último e-mail, ousei falar “phoda”, pisando em ovos para não assustá-la. Penso que ela também estava ansiosa por esse sopro de intimidade, já que escreveu “porrada”. Nesse ritmo, creio que não muito adiante poderei usar minha expressão libertadora: “puta que pariu”, que me serve nos momentos de raiva e de êxtase.

É claro que em casa também cumpro meu ritual de “Dona Sebastiana”. Ponho roupas para lavar, faço comida, preparo as instruções para a Conceição tocar a casa no dia seguinte. Sonho com uma nova decoração, tento colocar ordem no meu armário, certa de que essa é uma tarefa impossível e espero que o silêncio seja quebrado pela chegada do Helvécio e dos meninos, que passam por aqui feito passarinhos.

Nessa quinta,  o dia teve dose dupla de shopping. Primeiro almocei com a Vivi e a Iris no Boulevard. Depois, Iguatemi. Na próxima semana pretendo fazer um up grade na minha visita à “Cultura”: vou levar o notebook. Hoje, para escrever esse post, consumi o estoque de guardanapos do café.

Em tempo: quando tomávamos café no Boulevard fui atendida por uma moça chamada Ana Maria. Ao falarmos sobre a coincidência dos nomes, sua colega disse: “toda Ana Maria é bonita”. Ganhei o dia e quer saber? Acho que ela está coberta de razão.

Elisa Lucinda escreveu e a Vivi repercutiu: “parem de falar mal da rotina”. Então, tá...

“Dias, dias, dias!
Que iludem os que agem como senhores de sua sina.
E surpreendem vorazes as pessoas em desaviso.”

------------------------------------------------------------------------------
A cada dia, um dia... Em vários dias, a vida...

“Cada dia os dias são diferentes e mexem com agente de um jeito;
 Com uma magia ou um terror...

 Se não é mal de amor e mau de humor
 Ou harmonia ou euforia ou tédio
 E os sentimentos se renovam e morrem...
 A cada dia um assédio...
 Ou do vento ou do sol
 Ou do amado ou do amigo
 E as risadas disparam às vezes sem motivo
 Ou  as lágrimas caem de torpor ou tristeza ou perigo.
 A cada dia, um dia.
 Em vários dias, uma vida.
 Quantos amores?
 Quantos sorrisos?
 Quantos lugares?
 Quantos abrigos?
 Os dias e as noites interagem alheios aos medos, aos horrores, ao
 desassossego.
 Como vivos, como lares contém o destino.
 Dias, dias, dias!
 Que iludem os que não agem
 Como senhores de sua sina.
 E surpreendem vorazes, as pessoas em desaviso.”

 (“A cada dia, um dia... Em vários dias, a vida”, por Súlzer Larissa Germano)