segunda-feira, 20 de setembro de 2010

"Tudo que vai"....


O final de semana foi de tédio. Fez um calor insuportável na cidade, que, aliás, está coberta por uma névoa em razão da seca. Não chove e mesmo os Ipês, que transbordavam flores amarelas enfeitando a aridez do Planalto não suportaram o calor e foram perdendo seus cachos de flores fazendo um imenso tapete dourado.

Dediquei esses dias a organizar uma gaveta repleta de fotos. A ideia era colocá-las em álbuns. São fotos que representam muitos anos da minha vida, mas essa se revelou uma tarefa difícil. Não é usual tirar fotos de coisas ruins, mas é complicado olhar para momentos alegres registrados e perceber que eles pertencem a outra dimensão. É curioso olhar as pessoas que te abraçam carinhosamente numa foto e constatar que agora, não sabe onde estão.

As fotos revelam coisas curiosas. Você percebe que seu cabelo ficou melhor, mas que seu corpo era mais bonito. Aquele vestido inigualável, agora é bizarro. Os lugares que emolduravam a mais perfeita felicidade parecem apenas um cartão postal que alguém te enviou. Os filhos cresceram. Antes eles te beijavam e te olhavam como se você fosse uma divindade, agora, você tem dificuldades de achar uma foto recente na qual eles abracem você. O amor da juventude é um desconhecido. O vizinho prestativo virou o amor da sua vida.

Vê que suas sobrinhas estiveram sempre nos melhores e piores momentos de sua vida. Fica embevecida com as fotos da sua amiga e tem certeza que há entre vocês uma semelhança de irmãs. Olha seu irmão que foi embora tão cedo e chora de alegria, pois conseguiu registrar um abraço sem saber que era um adeus. Percebe que azul é uma cor que realça seus olhos, mas que foi aquele terninho vermelho que te abriu as portas do céu. Recorda aqueles aniversários em que meia dúzia de amigas fazia o papel de uma multidão. Constata que as praias de Natal foram as mais bonitas que você já pisou. Recorda os óculos de lente amarela e repudia não entrar naquele biquíni verde. Lembra da blusa rosa do último aniversário que você curtiu fotografar.

Lamenta que o amigo querido não esteja mais na mesma cidade e que seu sorriso largo só possa ser alcançado numa foto. Recorda as alunas que fizeram você se sentir tão querida. Revê as férias quando você era jovem e linda e não sabia disso. Ri da bolsa de retalhos que você mesma fez. Revisita o trabalho no qual passou a maior parte da sua vida. Encontra a amiga que apareceu numa matéria de revista e se pergunta: o que terá sido feito dela? Casou? Mudou de país?

Lembra da sobrinha vestida de Papai Noel, naquele tempo em que seus filhos acreditavam na magia do Natal. Dá risada da viagem de férias que foi uma cilada. Lembra de perder a linha quando viu o Mickey Mouse. Abraça seu ídolo e descobre que não foi um sonho. Reencontra sua infância e chora quando lembra que depois daquela foto, seu pai viveu três dias e se foi. Imagina se vai rever aquele por do sol, se um dia vai nadar naquele mar, se vai mergulhar naquela lagoa, se vai sentir o sabor daquele sorvete.

Sente saudades do tempo em que buscava seus filhos na escola, tem vontade de dirigir aquele carro e de calçar aquele sapato com flores. Lembra do passeio àquele rio de águas escuras e do beijo na janela e da bermuda rosa e do cabelo encaracolado. Tem vontade de abraçar a amiga que você só descobriu que amava depois que ela se mudou. É capaz de reter a imagem da viagem que ela fez à Grécia apenas pelo relato de suas cartas.

Recorda a gravata borboleta, a calça xadrez, o sapato vermelho de cadarços, a blusa rosa que tinha o desenho de um tênis. O vestido longo, a sandália apertada, a tiara e o conjunto verde e a echarpe. Sonha tirar uma foto com aquele vestido de bolinhas que você nunca pode usar. Se enternece com o beijo, ouve a canção que embalou seu primeiro amor. Sente o gosto das medias lunas e do sorvete de frutas do bosque.

Caminha pelas ruas da capital uruguaia, e retorna aos dias de São Paulo carregando uma enorme pipa colorida. Lembra da roupa azul e de ter sido confundida com uma editora de moda e das madrugadas loucas e do samba cantado por Chico Buarque.Visita as esculturas de Rodin, lembra vagamente das pinturas de Monet e sabe exatamente a cor do céu de Manhattan. Vê os cabelos arrepiados do primeiro filho e os cachinhos do outro. Lembra do dia que pensou que ia morrer. Chora pela vida que podia ter sido e não foi. Chora, pois a vida vale, seja lá como for.

"Tudo que vai, deixa o gosto, deixa as fotos, quanto tempo faz"....