sexta-feira, 19 de novembro de 2010

BR 060


Em 1970, Tony Tornado ganhou o Festival Internacional da Canção com a música “BR 3”, que falava sobre a famosa rodovia que liga o Rio a Belo Horizonte. Virou um hit, em especial, pela coreografia que o cantor criou. Bem, mas esse post não é sobre a música, nem sobre a importância dos festivais.

Voltei hoje de Goiânia. Faz muitos anos que pego a estrada que liga as duas cidades, mas hoje foi especial. Estava sozinha e durante as duas horas e alguns minutos meus pensamentos fizeram uma viagem paralela pelas lembranças. Curiosamente, percebi que a estrada pode ser vista como um personagem de filme e no decorrer dos anos, várias vezes, funcionou, também, como um ente querido.

A primeira vez que cruzei a BR 060 de Goiânia para Brasília eu era uma adolescente. Fizemos uma visita a uma prima que morava na capital federal. Seu marido era um carioca, negro, alto, muito alto, chamado Agenor. Cheguei à cidade com meu irmão, minha cunhada e minha prima Ruth. Lembro-me de algumas coisas desse dia: a cidade me pareceu um deserto com prédios distribuídos no meio do cerrado. Minha prima – que viria a morar na cidade antes de mim – disse que jamais moraria aqui. Lembro que almoçamos muito tarde, por volta de duas da tarde, o que para os hábitos metódicos de meu irmão, era uma aberração. Nesse dia, pela primeira vez, vi alguém servir maionese com beterraba. Isso sim, achei aberração maior ainda.

A segunda vez, eu vim com a Mazzarelo, minha meio irmã e seu namorado Tobias. Ele veio resolver questões burocráticas e eles me convidaram. Dessa viagem lembro-me de uma coisa estupenda para a época. Pela primeira vez, subi numa escada rolante. Foi uma experiência e tanto. Comemos pastel na Rodoviária e eu achei o máximo “andar” naquela máquina que fazia a gente se deslocar de um andar para outro sem esforço.

Eu não me lembro da terceira vez. Minha memória só alcança a viagem que fiz quando a prima Ruth já morava aqui. Lembro-me, particularmente, da volta. O então namorado dela, Carlos, decidiu nos levar de volta a Goiânia. "Nós", nesse caso, era minha amiga Dudu e eu. Na época, a estrada não era duplicada e ele fez o percurso em uma hora e quarenta e cinco minutos. Foi inesquecível, pois Dudu e eu mal respiramos de tanto medo.

Depois, a estrada se tornou uma constante para mim. Foram mais de quatro anos indo e vindo com muita freqüência. A razão? Aquele amor que já mencionei. Fazíamos revezamento e desse tempo eu me lembro como eram tristes os retornos. Era dolorido ir embora. Fiz dúzias de viagens de carona Goiânia/Brasília com dona Elodia. Uma senhorinha de pouco mais de um metro e meio, se muito. Na época, ela era responsável pelo malote de uma loja de fotografia de um amigo meu. Saia pontualmente às 18h00 de Goiânia e passei a acompanhá-la. Nos tornamos amigas e confidentes. Ela foi uma fonte de aprendizado para mim e as viagens passavam como um raio, pois nossas histórias faziam o relógio andar rápido.

Dessa época, lembro-me de uma viagem que fiz com meu irmão Roberval. Ele veio trazer os móveis que adornariam a casa que seria minha e do amor daquele tempo. Foi uma oportunidade rara que desfrutamos, falando de coisas que poucas vezes tínhamos privacidade para tratar.

No percurso de hoje, tantos anos depois, as lembranças foram evidenciadas pela trilha sonora. A música de Ivan Lins que há muito eu não ouvia foi responsável por trazer de volta um turbilhão de recordações. Estavam lá a viagem de moto e a parada nas mangueiras para descansar. A tentativa de achar o fio da meada daquele amor que se perdeu para sempre. A música “Começar de Novo”, entregue como um troféu para ilustrar a minha capacidade de ter superado uma separação, que naquele tempo parecia uma tragédia, mas que provou ser brincadeira de criança frente à separação que viria depois.

A estrada foi testemunha de muitas lágrimas. Chorei um milhão de vezes achando que não haveria mais razão para viver. Cheguei mesmo a tentar um atalho passando dessa para outra, mas me esquecendo que quem morre de véspera é peru. Dessa trágica viagem lembro-me do Lizandro indo me buscar na Rodoviária e determinando: “chega”! Mas, novos episódios pouco memoráveis ocorreram ainda.

Pouco tempo depois, o destino cuidou de dar seu basta às minhas ilusões, colocando no meu caminho um amor que foi crescendo e se tornou uma história de verdade. Nos primeiros tempos, cruzamos a estrada com parte do mobiliário, dessa vez, para uma casa que seria efetivamente nossa, para a família que estávamos começando a construir. Essa família foi responsável por outros momentos memoráveis nesse percurso. Nossos filhos crescendo, e mudando o roteiro dessas viagens. As paradas inevitáveis para dar comida aos meninos, fazer xixi, ver de perto o passarinho, pisar no chão de terra e responder as perguntas sem respostas óbvias que eles faziam sem parar. “Mamãe essa estrada vai até o infinito”? “Papai, posso dirigir seu carro”? “Mamãe, porque a gente não pode ir no banco da frente”. “Pai, porque há tantos verdes diferentes?’ “Mamãe, aquelas árvores estão encostando no céu?”.

Assim que eles foram crescendo, as viagens foram ganhando outros enredos. Novos personagens e a estrada também sofreu suas mutações. Mudou para melhor. As pistas aumentaram, o trajeto ficou mais rápido, mais seguro.

Vezes e vezes cruzei essa rodovia sozinha. Dúzias de vezes achando que não tomaria o caminho de volta, que seria a última vez. Certa ocasião peguei os meninos e cheguei a Goiânia pronta para tomar um porre. Logo eu, que nunca gostei muito de beber. Era uma forma de delimitar território, de realçar a capacidade de ser dona de mim. Nessa aventura, me acompanhou a Vânia, na noite em que tomamos um balde de margaritas e fizemos charme para o garçom. Final de linha.

A Vânia também estava presente numa das viagens em que afundei o pé para chegar a tempo de pegar um show do João Bosco que, aliás, foi trilha sonora de muitas viagens.
Viviane também foi minha companheira em várias ocasiões. Íamos juntas cantando juntas todos os hits do Drexler, trilha sonora para nossas conversas tristes e alegres. E tivemos a inesquecível freada ao chegar a Samambaia quando uma moto saiu do nada e pensamos que não haveria como não arremessar seus passageiros e respectivas sacolas.

Houve um tempo em que senti uma enorme vontade de não precisar mais cruzar esse trecho. Muitas vezes, fazer esse percurso foi uma busca inevitável do colo de minha mãe. Outras, eu deixei Goiânia sentindo hostilidade por ela. Família é assim. A gente ama e odeia em frações de segundo. Hoje, sai de lá chorando, pois foram ótimos os dias que estivemos juntas. Cada vez mais, também, sofro por me separar de meu irmão. Ele e suas piadas, seu jeito peculiar de expressar amor. Enfim, a vida é assim.

A viagem de hoje foi marcante, pois os procedimentos cirúrgicos que me aguardam e a proximidade cada vez mais determinante do começo da diálise criam insegurança, lançam-me num processo de medo e ansiedade permanentes.

Espero, entretanto, que ainda haja muitas viagens e que elas sejam sempre momentos de alegria pelo reencontro e de esperança de que a vida possa ser verdejante como a paisagem dessa estrada e que representem um "começar de novo". Estou lendo “O tempo entre costuras” e uma frase foi muito significativa: “Deus aperta, mas não sufoca”. É com isso que estou contando.






3 comentários:

Solange disse...

Bom ler seus posts, pois hoje estou triste, ou será melancólica. Não sei explicar.
Tudo vai dar certo, Ana.
Beijo,
Sol

Equilibrista disse...

Querida,

Como é mesmo aquela frase? No final dá tudo certo, se não deu ainda é porque não chegou ao final.
Escute Diogo Nogueira que vai ficar melhor. E claro, não se esqueça de que temos que nos ver amanhã. Bjs

Bailarina disse...

Ouvir "começar de novo" sempre me lembrou vc. Naquela época em que vc a ouvia repetidamente eu nem fazia a remota idéia de qto tinha um significado dolorido...Muito menos vc e eu imaginávamos qtas vezes teriamos que começar outra vez, e outra vez, e outra vez...Tudo bem, desde que "as alminhas" fiquem bem longe, né? hahahaha Ou senão, latas de leite condensado serão dissipadas na BR 060!