sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Linha do Tempo





Eu não me lembro muito da minha infância. Nasci em Araguari, Minas Gerais, onde vivi pouco. Logo em seguida, minha família foi para Marzagão, lugar que em Goiás chamamos de “currutela”. Para que você possa localizá-la no mapa, fica a menos de trinta quilômetros de Caldas Novas, a conhecida cidade hidrotermal.

Dos tempos de Marzagão lembro que morava numa casa com um grande quintal, a cozinha era de chão batido e o local preferido da minha mãe. Sua presença lá era garantia de variedade de biscoitos e doces.

Morávamos de frente à casa de um grande amigo de meu pai: “tio Joaquinzinho”, dono da farmácia, homem de cultura e de muitos filhos. Uma porção de crianças de muitas idades. Dava-me muito com uma de suas filhas: Leda. Uma de nossas diversões preferidas era tomar Sonrisal. Sim, o antiácido efervescente. Era uma delícia! E claro, implicava em um ato de delinqüência, já que ela “subtraia” da farmácia os envelopes para que pudéssemos saboreá-los às escondidas.

Fomos morar em Goiânia quando eu tinha perto de cinco, seis anos. Até que meu pai comprasse nossa casa, ficamos num local pequeno no subúrbio. Dessa época lembro-me de ir muito à casa da Tia Rita, prima da minha mãe. Sua filha Leda namorava meu irmão Brasil. Do lado da casa da Tia Rita ficava a casa da Tia Mariinha, e com ela morava a mãe a quem chamávamos “Tia Chica”. Uma senhora de quem eu tinha muito medo. Devia sofrer o que hoje chamamos “depressão”. Queixava-se sistematicamente de estar com um “abafamento” e levava à mão ao peito para indicar onde o mal lhe consumia. Quando ficava brava gritava: “ô desgraça pelada”. Quando isso acontecia, todas as crianças eram retiradas do lugar, pois para a época, esse era um xingamento e tanto.

Amigos? Não, não lembro de tê-los nesse tempo. Sei que foi nessa época que fui pela primeira vez ao cinema. O filme? “A Paixão de Cristo”, passado em dois atos, como no teatro. Quando as luzes foram acesas eu estava banhada em lágrimas. Era como se tivesse, por alguns minutos, sofrido os mesmos percalços daquele Jesus vitimizado. Desde então, sempre foi assim. Basta que as luzes se apaguem para que eu me sinta parte da história que será contada na tela.

Por volta dos sete anos fui estudar no Grupo Escolar São Judas Tadeu, ou era São Domingos. Enfim... Lá vieram os primeiros amigos. Uma delas se chamava Shirley, mas eu a chamava carinhosamente Rosemary e depois Rose. Era uma loirinha muito magra, que tinha uma voz esganiçada, igual a de uma personagem de desenho animado, que era telefonista e que repetia à exaustão: “aqui fala Rosemary, da delegacia de polícia”. O irmão Ricardo, também estudava conosco. Os país eram muito conservadores e eu sempre achei que ela era muito diferente de todos daquela casa. Fisicamente, eu digo. Eram todos claros, mas eram de baixa estatura, de rosto redondo, enquanto a Rose, era mais alta, tinha um rosto fino e era muito magra. Não há de ver que ela era adotada? Mas essa é outra história.

Houve uma fase bastante triste nessa época. Meu pai, que era fiscal de tributos, foi transferido para uma cidade chamada Turvânia e minha mãe o acompanhou. Como era período escolar tive que ser apartada deles e ficar morando com meu irmão e minha cunhada, recém casados. Nas férias, que naquele tempo duravam muito, eu experimentei as amizades do interior. Era vista como uma garota extravagante, da cidade grande, que usava roupas curtas, ao contrário das outras meninas que se vestiam de forma mais contida. Em especial as nossas vizinhas, que tinham cabelos enormes e usavam saias até o joelho porque eram crentes. E olha, naquele tempo os crentes eram minoria.

Aqueles foram meses curiosos. Ganhei a rifa de um rádio, cortei o pé em arame farpado numa fazenda, ao subir num pé de manga e fui surpreendida certo dia pelas vizinhas gritando: “Mãe! Corre, que a Hosana tá lançando! Hosana tá lançando!” Corri porque não conseguia imaginar o que poderia significar “lançando”. Ao chegar na casa da vizinha, descobri que Hosana estava simplesmente vomitando. Acho que foi ai que entendi que vivia num país que falava muitas línguas.

Desses tempos lembro também que sofria profundamente toda vez que tinha que cortar o cabelo. Como eram encaracolados, minha mãe me fazia usar um tipo “Joãozinho”. Lembro que voltava e chorava horas de raiva da minha aparência de menino. Lembro também que é dessa época a mania de falar sozinha. Ou com personagens imaginários. Passava horas no quintal de casa construindo histórias e imaginando outras vidas. Certo dia andava pela rua numa prosa boa comigo mesma. De repente alguns meninos começaram a rir e comentar: "Ela tá falando sozinha". Para despistar eu comecei a cantarolar e eles de pronto rechaçaram: "ihhh! agora ela tá tentando disfarçar". Foi a suprema humilhação!

O sentimento mais forte desse tempo era a relação com meu pai. Ele tinha um fusca. Acho que era verde. Tratava-me com um amor que era quase devoção. Chamava-me de “Aninha” e dizia que eu ia casar cedo. Tinhamos o hábito de comer um pudim vendido na esquina da rua quatro, no centro da cidade, e de eventualmente comer frango assado no restaurante do "grego".

Tinha apenas nove anos quando ele se foi. Eu assisti seu último suspiro e me lembro cada detalhe daquela madrugada quando meu irmão me acordou e disse que precisávamos ir ao hospital. Depois, aquele dia interminável para velá-lo. Metade dele eu passei sentada no alpendre conversando com a melhor amiga daquele momento: Soraya. Neta da nossa vizinha, dona Tilde. Meu pai morreu no terceiro dia de janeiro de 1970.

Eu ainda não sabia, mas minha vida nunca mais seria a mesma. Acompanhei minha mãe no seu luto, para uma temporada na fazenda do meu irmão. Lembro de andar pelo mato e conversar muito com a minha solidão. Nesse período, experimentei uma amizade que me acompanharia por toda a vida: os livros. Minha cunhada era professora do núcleo rural e tinha uma pequena estante recheada de clássicos infantis.

Quando retornei para o período escolar tinha um monte de amigos me esperando e uma nova vida para viver. É dela que vamos falar no próximo encontro.

2 comentários:

Bailarina disse...

Esta quase uma biografia isso aqui, hán?

Equilibrista disse...

Pois é, querida. A gente começa e quando percebe é por ai. Como disse a Elis, estou aqui a fazer minha terapia publicamente. Daqui a pouco posso chamar o blog de Páginas da Vida". Bjs