terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

"É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã".


A primeira lembrança que tenho dele me remete a sorvete de pistache. Eu não sei que idade tinha. Sei que nunca havia experimentado pistache, mas lembro que era verde e que era bom.

Lembro que ele sumia de vez em quando e que minha mãe chorava pelos cantos e que cochichava sobre seu destino. Lembro que ele era muito bonito, com seus olhos azuis faiscantes, feito os atores italianos da época.

Uma vez achei no quarto dele uma revista em quadrinhos com várias cenas picantes. Eu não fazia a menor idéia do que era sexo, mas naquele momento acendeu a luz vermelha. Aquilo não era para criança.

Ele me tratava com certa crueldade. Deixava sempre um restinho de água no copo e depois de beber, derramava em mim. Claro que eu sempre chorava e corria para a barra da calça do meu pai, aliás, eles tinham uma relação tensa. Uma vez eu o vi chamar papai de “judeu”. Eu não fazia a menor idéia do que era “judeu”, mas sei que a tensão se acentuou.

Lembro que ele trabalhava numa empresa chamada “Liquigaz” e que tinha um amigo baixinho chamado Tino e outro amigo bonitão chamado Mauro. Para nós ele era “Zé”, mas quando ficou noivo e foi se casar fiquei sabendo que seu nome era Roberval.

Seu casamento dividia os sentimentos. Enquanto meu pai se mostrava exultante, porque ele ia se casar com uma moça de boa família e que isso poderia “dar um rumo a vida dele”, minha mãe chorava. Achava que ele era muito moço e como ia se mudar para uma fazenda, ambiente com o qual não tinha a menor intimidade, aquela decisão era uma temeridade.

A moça de boa família era a Teresa – que foi sua mulher por toda a vida – ela era noiva de um amigo dele. Falava-se a boca pequena que ela se deslumbrara por ele e que rompera o noivado. Para mim aquilo parecia filme, mas era destino.

No seu casamento me vestiram com meias três quartos com “pompons”. Isso me inflou de ira – embora eu não tivesse a exata dimensão desse sentimento. Sei que a cerimônia civil aconteceu na casa da noiva e que ele demorou para dizer “sim” quando perguntado se “aceitava aquela mulher como sua legítima esposa”. Minha mãe respondeu por ele. “Sim”. E todos pareceram aliviados.

Pouco depois do casamento ele e a Teresa foram passar uns dias em Goiânia. E ai, pela primeira vez eu soube o significado da palavra “ciúme”. Ele recebeu uma cesta com rosas vermelhas e um cartão. Minha cunhada ficou louca. Ele atirou as flores no quintal e saiu. Ela se enfiou no quarto e tomou um porre de vinho. Nesse dia eu soube também o que um vinho – de má qualidade - pode fazer a alguém. Ela trancada e todos batendo, implorando que abrisse porque sabíamos que algo não ia bem. Horas de muita tensão.

Então, ele chegou. Magnânimo apenas bateu na porta e pediu: “Teresa, passa a chave por baixo da porta”. Ela obedeceu. E a cena que se viu depois foi bizarra e dispensa comentários. Calmo ele a jogou nos ombros como se faz com uma toalha, levou-a para o banho, lavou-a, secou seu cabelo, enquanto minha mãe limpava tudo. Depois ele a pôs para dormir como se fora um bebe. E ninguém disse uma palavra. Ou se disse o fez de forma silenciosa. Como, aliás, eram ditas as coisas na minha casa.

Há muitas coisas que poderiam ser ditas sobre o meu irmão. Ele não era um homem comum o que tornaria impossível a tarefa de traduzi-lo em palavras. Muitas coisas ficaram por dizer porque, infelizmente, a gente sempre pensa que haverá uma próxima vez. O que posso dizer é que passamos a vida, aparentemente alheios ao que sucedia ao outro. Eu me ressentia de não receber a atenção que julgava merecer, ele não era exatamente pródigo ao verbalizar seus sentimentos. Mas sabíamos intimamente, cada qual ao seu modo, da intensidade do nosso amor.

Tivemos alguns momentos que entendo como uma despedida. Um deles foi numa comemoração de dia das mães em que ficamos sentados à mesa e começamos a cantar. Ele gostava de música e de boa música. Depois, no natal de 2006. Ele ficou apenas um dia. Nessas ocasiões costumava gastar mais tempo com meu irmão Brasil, mas curiosamente pediu-me para levá-lo à rodoviária para comprar a passagem de volta. Fomos conversando e ouvindo um disco do Drexler. Eu lhe falei da viagem que fizera com a Vivi a Montevidéu e ele me disse bem ao seu estilo, que a música era boa.

Fazia muito tempo que não me chamava de “Aninha” e recomendou que eu me cuidasse. Nesse mesmo dia fomos, Brasil e eu, levá-lo para tomar o ônibus e pela primeira vez estávamos os três irmãos reunidos. Eu ali, me sentindo finalmente aceita no círculo restrito dos homens da família.

A última vez foi no aniversário de 80 anos de minha mãe, em março de 2007. Estava alegre e contrariando sua fama de rabugento com fotos, sorriu para todos os cliques. Eu estava triste. Era uma tristeza que não parecia ter explicação. Contou divertido para Helvécio – a quem chamava de “Paraíba” que tivera um sonho em que o diabo queria levá-lo. Eu cheguei quando a estória começava e ri quando ele reproduziu o diálogo hipotético com o demônio: “com você eu não vou” e abriu um sorriso largo.

Na saída nos abraçamos e eu perguntei a ele – que parecia não querer ir embora – quando finalmente iria à minha casa? Ele respondeu: “qualquer dia desses, mas você sabe só vou se for de TAM”. Eu disse: “Então te mando a passagem”. Ele riu e se foi.

Quando entramos minha mãe me disse: “seu irmão estava diferente. Ele até disse que me amava muito”. Súbito, 17 dias depois ele nos deixou. Quando veio o telefonema com a notícia era como se eu não conseguisse acordar de um sonho ruim.

Hoje ele faria 62 anos. Fizemos tantos planos para seu aniversário de 60...trocamos e-mails, minhas sobrinhas e eu, sobre onde seria, como seria e no final, bem, no final não aconteceu. Alguém disse que na vida é assim, você faz um plano, Deus faz outro.

É muito dolorido falar desse assunto. É impossível não chorar rios de lágrimas ao vê-lo numa foto, ou lembrar do seu sorriso. Mas ele era um homem pragmático e dramatizar uma homenagem seria uma afronta. Eu queria, portanto, lembrar-me dele com a música que nos pediu para cantar e que nós, Viviane, Eliane e eu, desafinadamente tentamos interpretar. Ele ria maroto quando perguntávamos porque gostava da canção. Sabe-se lá. De qualquer forma é uma bela canção.

É isso. Feliz Aniversário, irmão!


2 comentários:

Bailarina disse...

Eu me lembrei muito dele no dia do seu aniversário. Gostar dele pra mim é a prova de que o amor não necessita de obviedades! Lembro-me, com lágrimas nos olhos, desse dia das mães inesquecível, em que a gente cantava, cantava, cantava...Afinal de contas, a música parece sempre ter sido o elo entre essa gente, né? E, não sei se por uma enorme coincidência, ou por aqueles caprichos do destino, ao abrir esse blog e ver esse post, nada mais que a Adriana Calcanhoto tocava no meu play! Saudade, tio! Muita saudade!

Unknown disse...

Agora sim vou conseguir deixar meu comentario, claro q vc ja sabe de td q se passa aqui nesse coração, mais fiquei mto emocoinada com a sua homenagem, apesar dele se fazer de durão ele com certeza ficaria mto feliz em ver q tds nos o admiravamos mto ele.